Uma realidade, muitas verdades

A complexidade dos efeitos do rompimento da barragem faz com que tenhamos que aceitar e conviver com múltiplas perspectivas sobre, por exemplo, quais ações são as mais urgentes ou como devem ser implementadas. Muitas vezes, essas perspectivas são contraditórias, mas todas representam algum aspecto que deve ser considerado pelo trabalho da Fundação.

PAULA GERALDO ALVES
37 anos, que alertou vários moradores de Bento Rodrigues e salvou muitas vidas

“SAÍ CORRENDO COM MINHA MOTO, A BERENICE, PARA AVISAR OS MORADORES”

Quando aconteceu o rompimento da barragem, eu estava no viveiro de mudas da Samarco. Eu era prestadora de serviço. Ouvimos uns barulhos que pareciam de avião, helicóptero, não sei, um som estranho. Aí alguém ligou o rádio da caminhonete e começamos a ouvir as pessoas apavoradas gritando sobre a barragem. Saí correndo com minha moto, a Berenice, para avisar os moradores de Bento. Não sabia se meu filho, João Pedro, estava em casa. Fui gritando e buzinando pelas ruas. Acabou a gasolina, eu desci e fui correndo e avisando a todos. Ninguém duvidou, as pessoas saíram de suas casas avisando o pessoal. Não tinha ideia de que um tsunami de lama estava invadindo nossa área. Achava que era a água do rio que estava se espalhando e depois voltaríamos para limpar nossas casas. Só quando cheguei na parte alta que me dei conta da tragédia. Ali encontrei meus pais, meu filho e vizinhos. Ninguém quis dormir. Todo mundo praticamente passou velando Bento Rodrigues à noite.

MILTON MANUEL DE SENA
Faz parte da comissão dos atingidos pela barragem e é editor-chefe do jornal A Sirene, que retrata a realidade dos impactados.

“OS ATINGIDOS NÃO RECONHECEM A FUNDAÇÃO RENOVA”

Faço parte da comissão dos atingidos e sou editor-chefe do A Sirene. O jornal tem esse nome em razão da sirene que não tocou em lugar nenhum no dia do rompimento, podendo salvar vidas. Existe um movimento aqui chamado “um minuto de sirene” desde os primeiros dias após o 5 de novembro, no lugar de “um minuto de silêncio”. Acho que a Renova usa de palavras e termos jurídicos muito difíceis do pessoal entender. Isso dificulta o diálogo. Na verdade, tudo o que conseguimos foi através do judicial e não do diálogo, porque não há confiança nessa relação. Os atingidos não reconhecem a Fundação Renova, não aceitam a Fundação para a negociação. O causador de tudo foi a Samarco. Então é ela que deveria assumir todo o processo, na visão de alguns. Eu entendo que poderia ter sido feita sim a Fundação, mas com participação e o aval dos atingidos. Para nós, a Fundação não tem representatividade, embora ela seja reconhecida juridicamente.

Na época de sua criação, disseram que o trâmite seria mais fácil. Mas não é assim que acontece. Eles estão lidando com gente da roça, com pessoas que dão muito valor à honestidade e à palavra. Trabalho com todas as comunidades e vejo muito pessimismo do pessoal em relação ao futuro. Há o trauma de ter perdido tudo, a indiferença, o alto grau de discriminação na cidade. Na escola, os meninos são chamados de pé de lama. No princípio, o acolhimento foi maravilhoso. Com o passar do tempo, o pessoal começou a ser culpado pela paralisação da Samarco. Há grupos na cidade que instigam esse preconceito. Tem gente que não tem coragem de ir com cartão de auxílio no mercado porque é discriminado na hora de ir para o caixa. Acho que a parte mais difícil de toda essa história nem é o reassentamento, que vai acontecer daqui dois, três anos. A minha pergunta é: será que eles vão aguentar viver em Mariana por esse tempo?

MONIQUE RODRIGUES DOS SANTOS
30 anos, pertence à colônia de pescadores de Mascarenhas, em Baixo Guandu (ES).

“O MEU SONHO É VOLTAR A PESCAR, MAS ESPERANÇA, EU NÃO TENHO”

Peguei a profissão de pescadora do meu pai, assim como acontece em outras famílias. A comunidade sempre viveu essencialmente da pesca. A gente nunca pensou em viver sem o rio, isso nunca passou pela nossa cabeça. O pessoal do Diálogo [da Fundação Renova] está sempre aqui, mas as demandas da colônia nunca são resolvidas. Cada hora é uma história diferente. Eles sempre falam nos 40 projetos para a recuperação do meio ambiente, mas não vejo ninguém resolver nada. Acho que a Fundação deveria olhar com mais atenção para os impactados, pensar num projeto para as pessoas se ocuparem. Antes as pessoas tinham trabalho e isso foi arrancado delas. O meu sonho é voltar a pescar, mas esperança, eu não tenho, não. O rio até pode voltar ao que era, mas vai ficar para sempre a dúvida se o peixe está contaminado ou não.

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RAIMUNDO FERNANDES, morador de Barra Longa, que já começa a enxergar os resultados do trabalho da Fundação Renova

“BARRA LONGA JÁ MELHOROU DEMAIS E VAI FICAR MAIS BONITA”

A gente estava acostumado com enchente. Moro aqui há 70 anos, então, o céu estava estrelado, sem chuva e não acreditei quando disseram que ia chegar. Lá de madrugada, acordei com o barulho diferente e fui para a ponte ver a lama vindo. Depois, teve muito movimento aqui. O pessoal da Fundação trata a gente muito bem. Às vezes, demora porque não depende deles. E Barra Longa já melhorou demais – a pracinha é um espetáculo, e vai ficar mais bonita. Pessoal que vem de fora comenta. Há pouco tempo, teve uma procissão e o pessoal logo tirou o olho da santa e ficou admirando a cidade.

JOSÉ DO NASCIMENTO DE JESUS
71 anos, conhecido como Zezim, integrante da Associação de Moradores de Bento Rodrigues e da Comissão dos Atingidos por Barragens.

“SEI QUE AINDA VOU VOLTAR PARA O MEU LUGAR”

Fugi usando apenas uma bermuda, chinelo de dedo e carregando o celular. Só vimos a lama derrubando tudo aquilo que demorei 30 anos para construir. Vivia cuidando de galinhas, vacas, porcos, fazendo horta. E tocando viola e violão no Trio Maravilha e no coral da igreja. Sou aposentado, mas me criei na roça, sem luxo. Eu não vejo a hora do novo Bento ficar pronto. A previsão é para 2019, mas algo me diz que vamos mudar em 2018. As coisas estavam lentas porque tudo que depende do governo demora. Mas depois que a comunidade chegou a um consenso sobre o projeto, a criança que estava engatinhando agora vai andar. A maioria está como eu, doidinho para voltar. Bento vai ficar bonito, com saneamento básico, educação, posto policial e praça com coreto. O bom é você sair, caminhar e saber que vai voltar para sua casa de origem.

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LEONARDO DEPTULSKI
Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBHDoce), durante o workshop sobre pesca organizado pela Fundação Renova.

“HOJE TEMOS UM PLANO QUE, CUMPRIDO À RISCA, PODE MUDAR AS CONDIÇÕES DE VIDA NA BACIA DO DOCE”

A gente está precisando de respostas imediatas. Os pescadores tiveram suas vidas duramente atingidas com o desastre, e nós precisamos pensar com carinho em como buscar alternativas de sustento nesse período em que não é possível o retorno à pesca. Sempre acreditei no TTAC como um caminho melhor que a judicialização. Hoje temos um plano de trabalho para os próximos 15 anos a partir das demandas que foram verificadas na bacia do rio Doce, pensando no que é reparação, compensação, mitigação. Um plano que tem começo, meio e fim, com medidas socioambientais e socioeconômicas que, cumpridas à risca nos próximos 15 anos, vão mudar as condições de vida, não só na calha do Doce, mas em toda a bacia. Temos que ser persistentes, não podemos arrefecer depois de quatro, cinco anos, para que de fato a gente tenha um rio muito melhor do que era antes do acidente, pois a bacia já estava muito degradada.

SEBASTIÃO SALGADO
co-fundador do Instituto Terra, instituição parceira da Fundação Renova na recuperação de nascentes.

“POSSIVELMENTE, ESTAMOS TRABALHANDO EM UM DOS MAIORES PROJETOS DE RECUPERAÇÃO DE ÁGUA DO PLANETA”

A catástrofe foi tão grande e o Vale do Rio Doce já era tão degradado, que a expectativa com relação à Fundação Renova era muito alta. A nossa esperança é que num futuro próximo possa haver a aceleração na recuperação das nascentes e das matas ciliares, que farão o filtro de chegada de todos os resíduos minerais em direção ao rio, aumentarão o fluxo de água para lavar a calha e, assim, permitirão a recuperação ambiental do rio. É um processo de longo prazo e que precisa ampliar a escala. Já fizemos com 500 nascentes, mas precisamos de 370 mil, segundo nossa estimativa (o TTAC estabelece recuperação de 5 mil nascentes em 10 anos, 500 a cada ano). É possível que estejamos trabalhando em um dos maiores projetos de recuperação de água do planeta. A experiência do Vale do Rio Doce poderá ser usada em outras regiões do Brasil e no mundo inteiro. Com os recursos e a proposta da Fundação Renova, a capacidade de execução do Instituto Terra e a colaboração dos proprietários rurais podemos recuperar o vale do Rio Doce em 20 a 30 anos. E será o início de uma nova vida para o Rio Doce.

JOSÉ COELHO FARIA
sitiante de Paracatu que teve sua propriedade impactada pela lama

“EU NÃO CHEGUEI NEM A RECLAMAR, E O PESSOAL JÁ SE ANTECIPOU PARA ME ESCUTAR.”

Eu tinha resolvido viver uma vida de sitiante, estava animado, tinha contratado um caseiro para trabalhar aqui. Mas aí veio o acidente com a barragem e a lama chegou na minha propriedade até a porteira. Fiquei desanimado na época, disposto a vender o sítio. Agora estou animado de novo.  As obras que paralisei na época eu retomei. Eu diria que depois da Fundação Renova melhorou bastante, todos aqueles itens que eu reclamei em novembro de 2015, que estavam parados, começaram a dar vazão. Um dia desse eu ia fazer uma reclamação e quando foi no outro dia cedo recebi uma ligação da Renova, perguntando se eu estava tendo algum problema com a obra na minha propriedade. Eu não cheguei nem a reclamar e o pessoal já se antecipou para me escutar.