USO DO SOLO

A NATUREZA E O TRABALHO EM HARMONIA

Temos uma grande oportunidade nas mãos: transformar a região do rio Doce. Queremos que sirva de exemplo para outros lugares do Brasil e do mundo. Um lugar onde o trabalho das pessoas na agricultura, na pesca e no turismo aconteça em harmonia com o meio ambiente. Ou seja, ao mesmo tempo em que se restabelece as condições socioeconômicas, se beneficia a natureza e ajuda a conservá-la, fazendo com que se recupere e se mantenha sempre saudável. Esse é um trabalho que vai usar recursos, tecnologias e a capacidade de organizar as ações da Fundação, mas que depende da atuação de todos os atingidos e interessados na recuperação de toda a bacia do rio Doce. O grande desafio será sermos persistentes ao longo do tempo, pois deve levar de 10 a 15 anos, e unidos para entender que cada propriedade tem sua parte de contribuição para a solução de todo o território.

 

Uso do solo

João Bigode por Ricardo Correa

Já sabemos que esse é um desejo que está em muitos dos produtores rurais da região. “A lama afetou a parte melhor do meu sítio, onde plantava cana e outras coisas, e criava um gadinho. A casa também foi destruída, então, não dá para ficar lá mesmo. Repassei umas cinco vacas para os vizinhos tirarem o leite e mandarem para o laticínio. No meu sítio, elas não tinham condições de ficar. Nem mesmo a Chumbada, uma guerreira que ficou atolada e só conseguiu ser salva depois de muito trabalho de resgate”, lembra João Bosco Gonçalves, 68, mais conhecido como João Bigode na região de Paracatu, à beira do rio Gualaxo. “Tudo o que mais quero é minha terra de volta e viver no sítio. Os meninos (profissionais da Fundação Renova) já me disseram que a casa não poderá ser construída onde estava porque a área é de risco. E que também não vou poder cultivar nas margens do rio porque é contra a lei ambiental. Para mim tudo bem, eu não entendo nada disso. Só entendo mesmo é de plantar.”

 

A recuperação dos cursos de água e a qualidade do uso da terra dependem um do outro.

Primeiro passo: limpeza das calhas dos rios e estabilização das margens (Arquivo Fundação Renova)

Por isso, decidimos ligar todos os programas que ajudam na recuperação da natureza em uma única frente, que chamamos de Terra e Água. Afinal, esses programas darão mais resultado se trabalhados de forma integrada. Assim, quando olhamos o uso do solo, temos de pensar na limpeza das calhas e na estabilização das margens dos rios Gualaxo do Norte e do Carmo, na recuperação das Áreas de Preservação Permanente em todo o território até a foz do rio Doce, e na proteção e recuperação das nascentes, em geral, pertencentes às propriedades rurais ao longo dos rios, que precisam ser regularizadas com o Cadastro Ambiental Rural e um Plano de Regularização Ambiental. Isso significa ter uma atenção individual sobre cada propriedade, mas em favor da melhoria de toda a região atingida. (veja detalhes dos programas na página xx).

Na área mais próxima do rompimento é onde se concentra o trabalho mais pesado, para retirar árvores, galhos e rejeitos das calhas dos rios, dar forma às margens, minimizar o processo de erosão e proteger as curvas com pequenos muros de pedras (gabiões). É nesse trecho que vive o agricultor Márcio Ramos, Marcinho, 48 anos, que mora no distrito de Borba, perto de Paracatu. “Não vamos precisar sair daqui do nosso lugar. O pessoal (da Fundação Renova) só vai construir a casa numa área mais segura, aqui no sítio mesmo. Sei que vai ter um porão embaixo e a casa em cima, chique para danar”, fala com simplicidade. “Aqui, nós vivemos de tirar leite, que vai para o laticínio, de bater um pasto e da roça. Ouvi dizer que Paracatu vai ser construída um pouco mais longe de onde estava. Mas continuarei indo lá mesmo assim para ver os amigos.”

Com a parceria dos técnicos da Emater, todas as 237 propriedades rurais entre Mariana e a usina Risoleta Neves, entre elas a do Marcinho, passarão a ter o seu Plano de Adequação Socioeconômica e Ambiental (conhecido como Pasea), que regulariza a terra de acordo com as exigências do novo Código Florestal, para que se torne uma propriedade sustentável do ponto de vista social e ambiental. Isso inclui o Cadastro Ambiental Rural (CAR) feito e a papelada já preparada para ter o Plano de Regularização Ambiental (PRA), que vem por aí, mas ainda está em fase de regulamentação. Assim, estarão totalmente legalizadas e mais bem preparadas para combinar a atividade rural com o cuidado com o meio ambiente. Importante dizer que todos os Planos de Adequação Socioeconômicos e Ambientais serão construídos com a participação ativa dos proprietários para que cada Pasea seja personalizado e, assim, atenda às necessidades e aos interesses de cada pessoa.

A RECUPERAÇÃO DEVE ALCANÇAR TODOS

Grandes ou pequenos proprietários rurais, todos foram impactados pelos efeitos do rompimento da barragem. Nosso trabalho de recuperação do uso da terra e da água na bacia do rio Doce deve democraticamente considerar todas as realidades. O pecuarista Carlos Salgado Purger, Seu Carlito, da região de Governador Valadares, e a agricultora Marlene Ferreira Martins, do assentamento Primeiro de Junho, em Tumiritinga, são duas faces da mesma moeda.

O pecuarista Carlos Purger cria gado de leite na região de Governador Valadares.
Foto por: Alexandre Battibugli

A SEGUNDA CHANCE DE SEU CARLITO

“Sou pecuarista, de família tradicional nesta área, e minha fazenda fica a 28 quilômetros de Governador Valadares. Na propriedade, de 160 hectares, eu mexia com pecuária de leite, de corte e fiz um projeto para produção de feno. Comprei maquinário, montei irrigação e na hora que ia plantar veio a lama de Mariana. Fiz financiamento na Caixa Econômica Federal de quase R$ 500 mil, para ser pago em seis anos, com um ano de carência. Vendi meu gado para pagar o banco. Passou mais um ano, e não tive mais dinheiro para pagar porque também não tive dinheiro para plantar. Eu fiquei sem renda nenhuma, entrei no cartão de crédito, no limite especial. Hipotequei o único bem que eu tinha por conta desse projeto.

Depois que aliviou essa água do rio [refere-se à lama], eu arrendei o pasto para bois. É disso que estou vivendo porque o auxílio do cartão é pouco para as minhas contas. Tenho vontade de reativar meu projeto de feno porque no final do ano preciso pagar o banco. Mas para isso preciso de assistência técnica, mudas, adubo e herbicida e um dinheiro para comprar óleo e poder trabalhar.

Quero receber indenização pelo gado que tive de vender, pelo leite que deixei de tirar e pelo lucro cessante que deixei de produzir. Foi a maior tristeza do mundo ver o rio daquele jeito, porque além da fazenda em si, eu tinha um paraíso lá: uma praia de dois quilômetros de areia e o rio ficava cristalino. Dava para pescar dourado, pacu, pacumã, cascudo etc. Mas eu acredito que o rio pode voltar ao normal mesmo que esse processo seja lento. Eu já recebi a visita de um engenheiro agrônomo e um zootecnista da Renova, que trabalham na equipe de revitalização das fazendas. Estou me sentindo esperançoso. Eu não desisto, não.”

A AGRICULTORA MARLENE QUER REFLORESTAR AS MARGENS

“Chegamos ao assentamento em 1993 e passamos oito anos debaixo de lona até recebermos nossos lotes do Incra, que já havia desapropriado esta área. Aqui eu planto feijão, milho, horta e cana, tenho pomar com laranja, coco, todos os tipos de frutas. Mexo com gado de leite, de corte, mel e cachaça. O leite vai para a cooperativa, e vendemos o mel e a cachaça na feira do produtor na cidade e, às vezes, em Belo Horizonte. Meus dois filhos estudam e também ajudam nessa rotina.

Uso do solo

A agricultora Marlene Martins já foi sem-terra e agora quer recuperar o rio
Foto por: Alexandre Battibugli

O assentamento tem terra boa, nascentes, mas o mais importante para nós é o rio Doce. Com o rompimento da barragem, a gente ficou meio amarrado porque não tem
como produzir na margem do rio. E ficamos com cisma da água porque não sabemos o risco que ela pode trazer para a saúde. Furei poço artesiano para ter água para a horta e fizemos pequenas represas para dar água ao gado. Nossos produtos foram rejeitados um tempo pelo consumidor, que também ficou assustado.

Foi uma surpresa para nós quando a Renova veio nos procurar propondo reuniões, explicando sobre os programas para a recuperação do meio ambiente e cadastrando as pessoas. A maioria aqui já recebe o auxílio financeiro. Ficamos desconfiados porque se tratava de uma empresa, né?

Todo mundo depende desse rio e nosso assentamento se colocou à disposição da Fundação para reconstruirmos o rio Doce juntos. Sou uma simples camponesa, mas a minha vontade é de reflorestar as margens, de ter esse rio de volta e de ver ele bonito”.