Por Bianca Pataro, publicado originalmente na Folha de São Paulo em 11 de julho de 2018
O desastre é um “dos estados possíveis do real”, escreveu o antropólogo Renzo Taddei. Essa afirmação não desqualifica suas causas, tampouco desconsidera os impactos que incidem sobre suas vítimas. Partir do pressuposto do desastre como fenômeno que compõe a realidade tem como objetivo, acima de tudo, compreender como a vida se recompõe após tais situações, bem como interpretar os variados contextos que desencadearam sua ocorrência.
Após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), no dia 5 de novembro de 2015, um contexto de desastre foi instalado na bacia do rio Doce. Diversos aspectos da vida das comunidades foram desarticulados, tendo como ápice o deslocamento físico de pessoas e os debates sobre reparação, indenizações e reassentamentos. Entre a série de questões que se abrem após o desastre, tem-se a complexidade das relações que se estabelecem e que apontam para os atores envolvidos e suas pautas políticas.
Tem-se ainda o acionamento do passado como parte da estratégia de demarcação dos sentidos de comunidade, por meio da história, memória e identidade compartilhadas — o que se conecta às expectativas sobre a reparação, compensação e formulação dos reassentamentos em execução pela Fundação Renova.O tempo pretérito surge como lugar que deve ser restaurado na dinâmica de reparação, com as ações sempre pautadas na reconstituição. Não raro, a ideia de paisagem vem acompanhada do desejo de reconstrução.
Isso ocorre como se fosse possível destituir o espaço da bacia do rio Doce do desastre acontecido e retornar com a paisagem anterior, subtraindo todas as dimensões que hoje ocupam esse espaço e serão as responsáveis por sua construção e significação futura.O passado mencionado nem sempre é o passado vivido. O desastre provocou uma ressignificação do tempo, em que a memória que surge nas narrativas dos atingidos, muitas vezes, é a coletiva, tendo sido experimentada por gerações anteriores, mas que ganha espaço nas reminiscências individuais e conecta as perdas ocasionadas pelo desastre à perda da tradição das comunidades.
A retórica da perda é o principal argumento, por exemplo, para a percepção patrimonial sobre os bens culturais das comunidades deslocadas em função do rompimento da barragem. Após o desastre, com vistas à proteção da cultura das comunidades ou, em termos simbólicos, das próprias comunidades, tudo emerge como patrimônio, como ícones identitários dos atingidos.
Focados na reconstrução do passado, o presente torna-se tempo suspenso, em que figuram a luta política e a expectativa do retorno no futuro. Até mesmo em textos que a Fundação Renova recebe de órgãos governamentais, tem-se a preocupação de reconstituição dos modos de vida, colocada para a instituição como compromisso a ser seguido.
No entanto, no caso dos reassentamentos, como reconstituir modos de vida se as legislações urbanísticas impedem que se construam povoados, como se formaram organicamente os núcleos originais? Quais aspectos dos modos de vida devem ser observados? Os vínculos afetivos ou de apropriação do espaço?
Por fim, todo o cenário do desastre coloca em questão a ocupação de um espaço e a construção histórica de uma paisagem. Lembrando Octavio Paz (1914-1998) sobre a experiência do tempo presente: “Alguns a viveram primeiro como condenação, depois transformada em consciência e ação. A busca do presente não é a busca do éden terrestre nem da eternidade sem datas: é a busca da realidade real”.
Leio o artigo na íntegra:
O tempo suspenso na reconstrução do passado – por Bianca Pataro