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O desastre de Mariana sob diferentes olhares
O modelo de governança da Fundação Renova
Evento paralelo da Fundação Renova: uma reunião para olhar em direção ao futuro
“Encontramos uma unidade no rio”, disse representante do Conselho Consultivo
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Na sessão “Casos financeiros de investimentos em segurança hídrica”, realizada na manhã desta quinta (22) na programação do 8º Fórum Mundial da Água, foram discutidas formas de investimento e gestão de projetos sobre a água em casos no Brasil e em outros países do mundo. Presidente da Fundação Renova, Roberto Waack contou sobre a experiência da fundação em um sistema de governança único adotado no Brasil.
Apresentou um histórico do rompimento da barragem de Fundão, que ocorreu em novembro de 2015 e teve um “impacto significativo no patrimônio hídrico local”. O volume de rejeitos percorreu todo o leito do rio Doce até alcançar o mar, resultando em um depósito importante de rejeitos nos primeiros 100 quilômetros do curso d’água.
Essa situação dramática culminou na criação da Fundação Renova, que tem o objetivo de executar um conjunto de ações e diretrizes de acordo com um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) firmado entre as empresas envolvidas no desastre (Samarco, Vale e BHP) e diversos órgãos governamentais e ambientais. “Trata-se de um sistema de governança inédito composto de 42 programas socioambientais”, explicou Waack.
O programa dedicado ao tratamento de efluentes e saneamento foi um dos destacados pelo palestrante. “A frente de compensação tem entre os programas um investimento destinado ao tratamento de esgoto e resíduos sólidos dentro da calha do rio Doce. É preciso dizer que cerca de 80% do esgoto doméstico ao longo da bacia não eram tratados mesmo antes do desastre, ou seja, o rio já era impactado pelo esgoto”, disse.
Diante desse quadro, uma série de programas com investimento de 500 milhões de reais foram pensados para beneficiar 39 municípios. “A Fundação Renova tem o apoio do BDMG (Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais) e do BANDES (Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo) para a distribuição dos recursos. E como esse recurso será distribuído entre os municípios? Para isso, levamos em conta critérios como o número de habitantes de cada cidade, o percentual de esgoto tratado, o nível de impacto em cada área, entre outros aspectos.”
Para finalizar a sua fala, o gestor da Fundação Renova ressaltou o sistema de governança como um ponto primordial para a reparação dos danos. “Por existir um sistema de governança mútuo, com diversos órgãos trabalhando junto, no qual as comunidades, as prefeituras têm voz, a alocação de recursos é feita da forma mais eficiente.”
Em resposta à pergunta sobre as maneiras de manter o projeto e os investimentos diante de eventuais trocas de governo, Waack disse que essa é uma das questões mais delicadas do modelo de reparação. “O comitê da bacia tenta evitar a pulverização do recurso. Não se trata de distribuir recursos, é preciso ter transparência e monitoramento na alocação de recursos para a manutenção de todas as atividades, evitando fragmentação.”
Carlos Gonzales, engenheiro ambiental da Petrobras, aproveitou a discussão para apresentar um índice usado pela companhia para detectar e monitorar o risco hídrico em todo o país. “Desde 2002, a gente faz estudos para avaliar a disponibilidade hídrica e os riscos. Testamos ferramentas externas que têm uma customização para a atividade de óleo e gás. Dessa maneira, criamos o Índice de Risco de Escassez Hídrica. Nossa premissa era que essa ferramenta fosse prática, que não demandasse estudos e que fosse aplicada rapidamente.”
Gonzales explicou que o índice é dividido em três aspectos principais: oferta e demanda de água nas regiões estudadas (índice de disponibilidade), a variação da situação de disponibilidade e a capacidade de reação e recuperação (índice de resiliência). Nesse mesmo projeto, foi criado um botão de crise hídrica. “Quando apertado, o botão penaliza o índice de disponibilidade e vulnerabilidade e aciona o nível de atenção”, explica Gonzales.
A aplicação dessa medida na companhia foi feita em um universo de 44 instalações. Isso gerou um plano para a mitigação de riscos relacionados à água, composto de 40 ações. “A Petrobras dentro de seu padrão corporativo tenta uniformizar como a companhia aborda esse tema”, disse o engenheiro.
Joel Kolker, do Banco Mundial, que também participou da mesa, esclareceu o papel da instituição no financiamento de projetos relacionados ao meio ambiente. “Com relação à água, um dos desafios é chegar ao ponto do investimento. Ela deve ser tratada como commodity econômica ou direito humano? Estamos tentando mudar esse debate”, disse.
Há dois aspectos, segundo Kolker, que devem ser melhorados com relação aos tomadores de recursos: um deles é a eficiência técnica do beneficiado, ou seja, como a agência que recebe os recursos deve operar de maneira eficiente e clara. Caso contrário, diz Kolker, “fica difícil o setor privado chegar na discussão”. Outra questão é a regulação do meio ambiente, uma questão mais política que envolve não apenas a questão dos impostos, mas arranjos institucionais. “Para o setor privado atuar é preciso criar um ambiente saudável de regulação para realizar as transações”, disse.
O desastre de Mariana sob diferentes olhares
Momentos após o rompimento da barragem de Fundão, em 5 de novembro de 2015, o Serviço Geológico do Brasil (CPRM), empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia, foi acionado para acompanhar as consequências do vazamento de rejeitos ao longo do rio Doce. Alice Silva de Castilho, coordenadora executiva do órgão, foi uma das participantes da sessão “O desastre de Mariana: soluções sustentáveis para restaurar ecossistemas terrestres e fluviais” e contou sobre o processo de monitoramento que se seguiu ao desastre.
“A CPRM atuou no pós-desastre porque opera há mais de 40 anos na bacia do rio Doce, em ação conjunta com a Agência Nacional de Águas (ANA). A primeira ação foi colocar o sistema de alerta em funcionamento e avisar as pessoas para deixarem as margens dos rios afetados. Depois, elaboramos um modelo de turbidez para orientar os usuários para a captação da água no local”, disse a geóloga. As etapas de monitoramento incluíram a coleta de amostras de sedimentos, com 15 equipes atuando na área, e a análise em laboratório para diversos parâmetros.
A lama ainda passou por cidades como Colatina e Linhares, no Espírito Santo, e atingiu a foz do rio Doce. “Durante o processo, usamos conceitos de diluição e retenção de sedimentos. Definimos faixas de turbidez para divulgar as informações”, afirmou. Um monitoramento geoquímico também foi realizado em uma das etapas do processo. “Analisamos sedimentos de fundo, águas superficiais e de abastecimento, fizemos análise de PH e condutividade elétrica”.
Na visão de Onofre Alves Batista Júnior, procurador-geral do Estado de Minas Gerais, o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça após o desastre foi: “Será que as instituições públicas brasileiras estão preparadas para lidar com um problema de tal magnitude? Existe uma estrutura capaz de solucionar o problema diante de um crime ambiental sem precedentes?”
Seguiu-se uma preocupação sobre como conduzir o processo para evitar o sofrimento das pessoas e a deterioração da água. Como medida imediata, o Estado de Minas Gerais articulou uma ação civil pública contra as empresas envolvidas. “Naquele momento, ninguém tinha noção do valor de multa e reparação a ser cobrado. Propusemos uma ação de 2 bilhões de reais. Imediatamente vieram ações de vários órgãos diferentes. Chegamos à conclusão de que não existe no direito brasileiro um preparo para lidar com um desastre dessa magnitude”, afirmou o procurador.
O passo seguinte foi procurar a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e órgãos técnicos e ambientais para fazer um grande grupo e apontar caminhos para solucionar o problema, inclusive avaliando casos fora do Brasil, como o vazamento de petróleo da britânica British Petroleum no Golfo do México. “Decidimos alinhavar um grande acordo, já que a complexidade da questão era muito grande. Nesse caso, foi necessário abdicar da solução tradicional, ou seja, aquela que vai bloqueando recursos da empresa e constituindo fundos, pois as consequências podem ser uma paralisação completa da atividade econômica”.
Muitos grupos de pessoas afetadas pelo rompimento da barragem manifestaram preocupação com a paralisação da atividade econômica na região atingida. “A melhor alternativa era deixar a empresa de pé consertando o desastre. Chegou-se à conclusão da necessidade fundamental de construir uma fundação que aproveitasse ao máximo as estruturas já existentes: uma estrutura de governança para aprovar projetos, atuar e, se preciso, aplicar multas”. Desse modelo, nasceu a Renova. “A solução dada a esse caso é paradigmática para o país e serve de modelo para outras tragédias”, disse Onofre.
O modelo de governança da Fundação Renova
Na segunda participação do dia, na mesa sobre o desastre de Mariana, Roberto Waack analisou o modelo de governança da Fundação Renova. “Não tem como negar a surpreendente organização desse sistema sem precedentes no mundo e no Brasil. São mais de 70 organizações juntas com o objetivo de direcionar, monitorar e elevar o debate sobre a recuperação”, disse.
A governança funciona junto com o Comitê Interfederativo (CIF), formado por órgãos governamentais e ambientais, que traduz o TTAC (Termo de Transação e Ajustamento de Conduta) em ações e diretrizes e zela pela alocação de recursos. Além disso, existe um conselho consultivo que traz a voz de quem foi atingido, um painel de especialistas e a curadoria do Ministério Público, sendo que o processo passa por uma auditoria independente.
“O grande ponto de aprimoramento do programa é buscar maior participação dos atingidos. O diálogo com a população não é fácil porque nos associam às empresas que causaram o desastre”, disse Waack. Outro desafio apontado pelo presidente da fundação é a dificuldade de identificar as pessoas atingidas e o grau de impacto em um ambiente muito informal.
“Há um conjunto de ações emergenciais, mas acreditamos que vamos deixar um legado de aprendizado e educação de longo prazo. Temos certeza que estamos no caminho mais adequado. Nosso olhar é também para a permanência dessas ações, como a restauração florestal, o trabalho conjunto de tratamento de efluentes. Ao mesmo tempo em que avançamos no curto prazo, temos o compromisso de olhar para um horizonte mais consolidado”, disse Waack.
O trabalho integrado da Fundação Renova com o Comitê da Bacia do Rio Doce foi abordado na mesma sessão por Lucinha Teixeira, que preside a associação. Moradora de Governador Valadares, uma das cidades atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, ela explicou como funciona a bacia e destacou os planos de ação do comitê, que atua na área desde a década de 1990. “O trabalho é contínuo e temos um plano estratégico. É preciso dizer que a bacia do rio Doce, antes do rompimento, tinha a maior parte dos municípios sem tratamento de esgoto e com dificuldades de abastecimento de água.”
No momento do desastre em Mariana, ela conta que a região estava vivendo a pior seca em 40 anos. Entre os programas do comitê estão planos municipais de saneamento básico, uso racional da água na agricultura, com investimento de 2,2 milhões de reais, e programa de recuperação das nascentes.
“A gente precisa somar esforços, mas também empoderar quem já estava na situação. São várias ações ocorrendo. Nessa integração de duas governanças há um momento claro em que os comitês se encontram. Será que a população está participando desse processo?”, questionou Lucinha.
Evento paralelo da Fundação Renova: uma reunião para olhar em direção ao futuro
O engenheiro florestal e ex-ministro do meio ambiente José Carlos Carvalho abriu o side event da Fundação Renova, no fim de tarde desta quinta (22), com o relato de jornalistas que, nas décadas de 1920 e 1930, registravam como a região da bacia do rio Doce era diferente, bem mais verde, do que a situação que encontramos hoje. Segundo palestrante, “o rio Doce, assim como as demais bacias do Brasil, viveu uma tragédia silenciosa que vem de décadas e foi evidenciada e agravada pela tragédia de Mariana.”
As pastagens começaram a ocupar a bacia e houve uma transição no ciclo da madeira. “Cheguei a conhecer em Galileia um curral feito de madeira de jacarandá. Nós tivemos um processo de ocupação desordenada, uma substituição radical do terreno vegetal”, disse José Carlos, que considera a bacia do rio Doce como “a mais degradada do país”.
“Menciono esses dados para realçar o que chamamos de tragédia silenciosa, que lamentavelmente não ocorre só no rio Doce. Muito antes da tragédia de Mariana, o que era fonte de água virou fonte de sedimento. A calha foi completamente reduzida devido ao assoreamento”, afirmou.
Depois de uma explanação sobre o histórico da bacia, Marcelo Belisário, presidente do Comitê Interfederativo (CIF), órgão que trabalha em conjunto com a Fundação Renova na aplicação dos programas socioambientais e socioeconômicos no caso de rompimento da barragem de Fundão, contou como necessário um trabalho integrado para dar conta de um problema tão complexo. “Não poderíamos lidar com a questão litigante, precisava de uma arquitetura de soluções de problema. Temos uma série de instituições trabalhando colaborativamente. Precisava de um agente executor e optou-se pela criação de uma fundação aportada de recursos pela Samarco e suas controladoras”, explica.
O Comitê Interfederativo é uma governança formada por 11 câmaras técnicas que cuidam de 42 programas de caráter social, econômico e ambiental. Marcelo afirma que houve avanços significativos na recuperação da área, como o controle de rejeitos na região dentro da mineradora. “O acordo tem funcionado. É claro que temos percalços, situações conflituosas, mas temos um norte no sentido de execução de uma série de atividades complexas e estamos caminhando juntos.”
“Encontramos uma unidade no rio”, disse representante do Conselho Consultivo
Componente importante desse sistema de governança, o conselho consultivo representa a participação social nesse processo de discussão dos planos de ação. A responsável por falar em nome do conselho na sessão desta quinta foi Maria Auxiliadora de Fátima, nascida na cidade de Rio Doce, que deu nome ao rio. “Sou filha dessas águas. Nós sempre usávamos o rio sem ter consciência do que ele significava para a gente”, disse na abertura de sua fala. Ela destacou a importância de um senso de coletividade que foi criado após o desastre de Mariana.
Em um primeiro momento, no calor da ocorrência, ela conta que a população ficou triste e revoltada. “Quando aconteceu essa tragédia, nós percebemos o que era o rio em nossas vidas. Quando a lama chegou, o cheiro de peixes mortos, foi muito sofrido. As pessoas iam para a beira da ponte para ver o rio”. Depois desse sentimento, “os grupos começaram a se organizar, nasceu um senso de comunidade para reivindicar direitos que nem sabíamos que tínhamos. Encontramos uma unidade no rio.”
Os impactos serviram para os moradores locais se organizarem. Nas palavras de Maria Auxiliadora, foi o momento de “debater os direitos, lidar com as angústias dos outros, discutir com a Renova”. Para ela, “é uma construção coletiva, um grande legado”. A fala deixou Roberto Waack, presidente da Fundação Renova, que também estava presente na sessão, emocionado.
Zuleika Torquetti, da Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais, destacou que “a água pode ser entendida como um sinal de como evolui a recuperação do rio Doce”. Ela comentou que o sistema de “monitoramento adotado no local para avaliar a qualidade da água é dos mais modernos do Brasil”. Zuleika reconheceu o avanço do programa e chamou a atenção para o programa de saneamento que está sendo desenvolvido na região, com um investimento de 500 milhões de reais. “Temos que aprender e inovar nesse modelo. Entre os maiores desafios estão o manejo dos rejeitos e o monitoramento da biodiversidade. Não temos clareza do impacto em espécies vegetais, aquáticas e terrestres.”
Presidente do Comitê da Bacia do Rio Doce, Lucinha Teixeira usou sua fala para evidenciar a participação dos comitês que atuam na região desde os anos 1990. “Várias ações foram feitas para melhorar a situação da bacia antes do desastre. A gente quer que as ações durem”, disse. “Gosto de dizer que na gestão de recursos hídricos tem que ter ação coletiva, a discussão de comitê não tem que ter politicagem, mas critérios técnicos. Precisamos ainda fortalecer a parceria para otimizar as ações”, completou.